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“Cada dia a gente ouve a voz do rio mais baixo”

“Cada dia a gente ouve a voz do rio mais baixo”

Emocionado ao falar da eminente morte do Rio São Francisco, o pescador sergipano e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Damião Rodrigues desabafa: “cada dia a gente ouve a voz do rio mais baixo, a gente não vê ele cantar nem mais ouve a sua voz a conversar com a gente da forma que conversava antes e, com isso, a gente vai lamentando e vai morrendo junto com ele. Mas a gente vai continuar lutando pra um dia ver o rio voltar a falar alto, ouvir mais forte o barulho das suas águas, porque o sangue que corre no rio São Francisco é o mesmo que corre em nossas veias”.

A possibilidade de ver o rio que há anos alimenta gerações e faz parte da vida e do imaginário popular morrer aterroriza comunidades ribeirinhas de pescadores, indígenas e vazanteiros. Isso porque a ação nociva dos homens tem contribuído para que, além de mudar o seu curso, o rio mingue por conta do desmatamento, poluição e extração irregular de suas águas seja para irrigação, mineração ou geração de energia. “Eu nem quero pensar no rio morrer porque quando a gente pensa tem até sonho ruim. Mas eu acredito muito em Deus e sei que ele não vai esquecer da gente e nós ainda vamos ver ele com água”, diz emocionada a pescadora Alice Borges que mora na cidade de Juazeiro (BA), no médio São Francisco.

O manancial de múltiplos usos já foi chamado pelos indígenas de Opará que quer dizer “Rio-Mar”. Recebeu também o apelido de Velho Chico, Rio da Integração Nacional e também de Rio dos Currais, pois por ele percorriam grandes embarcações que transportavam gado, mercadorias e pessoas pelo sertão afora. Exuberante e com rica fauna aquática, o Velho Chico sempre sustentou milhares de ribeirinhos nos 160 municípios que banha, ao longo dos cinco estados que percorre (Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe).

Porém, o rio agoniza e registra o mais baixo volume de águas de sua história. Segundo relatório da Agencia Nacional das Águas (ANA), este ano Sobradinho opera com a vazão de água semelhante à de 2015, quando foi registrada a menor vazão média anual desde 1931. “Hoje a defluência de Sobradinho está em 550 metros cúbicos por segundo, isso é um desastre! Porque quando o Rio flui com esse volume o peixe some. Esqueceram que tem 35 mil famílias de pescadores registradas nos sindicatos de pesca que vivem do Rio?”, questionou o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), João Suassuna, em entrevista concedida à TV Universitária da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no dia 30 de outubro deste ano.

Sobre o assunto, o ecológo vegetal e professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), José Siqueira, alerta: “Há um blackout histórico em Sobradinho que já não está funcionando nenhuma turbina. A gente está no auge do período seco. A previsão de entrar em dezembro num volume morto de Sobradinho, como nunca se viu na história”. O professor explica também que, além da seca histórica, outros fatores têm tido uma influência direta na morte do Velho Chico. “As previsões que fizemos partindo do princípio da biodiversidade e do histórico do rio, em 2012, piorou muito com o avanço das fronteiras agrícolas. O agronegócio avançou muito no Cerrado. A região do Matopiba, essa nova fronteira agrícola, é um descalabro e está secando os rios do Cerrado onde está a grande fonte de acolhimento da água do São Francisco. O São Francisco adquire uma importância maior para o povo quando ele chega no Semiárido, numa relação do ribeirinho com o São Francisco que é de devoção, de respeito. É uma relação mais mística”, afirma lembrando a influência nociva do agronegócio no Alto São Francisco, região que reúne os principais afluentes do manancial.
Descendo ao longo do leito Rio, próximo à sua foz, o indígena Egídio Xokó que mora na Ilha de São Pedro, em Porto da Folha (SE), fala como o assoreamento está mudando a rotina do seu povo, que antes tinha o transporte fluvial como forma de deslocamento mais utilizada e hoje já não consegue se deslocar usando embarcações de médio e grande porte. “A gente faz um percurso de canoa pequena com dificuldade onde antes a gente fazia com lancha grande e este é um percurso doloroso. Nós, índios Xokó, temos nossa identidade ligada ao rio São Francisco, ele morrendo a gente vê aos poucos uma parte de nós morrendo com ele, não tem como a gente não ficar de cabeça baixa vendo a situação dele”, diz com tristeza, Egídio.

Não precisa andar muito nos estados cortados pelo Opará para ouvir o lamento dos ribeirinhos acerca das agressões ao São Francisco. Na comunidade de Bonsucesso em Poço Redondo (SE), a comunitária Quitéria Gomes vai contando os impactos que já são eminentes na região. “A situação do rio é muito crítica, os conflitos se intensificam a cada dia. O mar avança violentamente, com isso o rio fica cada vez mais frágil. O rio São Francisco é como se fosse a minha vida. É a vida do meu povo. É ele que nos mantém vivos, dele tiramos não só a água que consumimos, mas também o alimento e todo nosso sustento, por isso, tenho plena consciência de que não teríamos vida se não tivéssemos o Velho Chico”, afirma.

Na mesma localidade o pescador e militante, Damião Rodrigues explica quando a situação foi ficando difícil na região. “Aqui antes da usina ocorriam as cheias naturais, tinha época de novembro a março, e com isso tinham muitas lagoas de arroz e era uma fonte de sobrevivência e renda. Com a chegada da usina [hidrelétrica], o rio foi perdendo força, os peixes não se reproduziram mais como antes e nem foi mais possível plantar arroz”, explica.

Damião faz um alerta para a implantação de obras que já exploram o rio e outras que podem prejudicar ainda mais. “São vários desafios que o nosso povo tem enfrentado com essa baixa vazão, desmatamento, sem falar da invasão do hidronegócio, além da transposição que já tem impactado a região. No ano passado, vieram visitar nossa comunidade, porque há uma possibilidade de instalar uma usina nuclear aqui na nossa região, que além do impacto ambiental vai causar a saída dos moradores que terão que deixar o seu espaço para ir morar em outros lugares, totalmente fora da sua identidade”, denuncia Damião.

Ameaças da nascente à foz

Ao longo do percurso de 2.800 quilômetros em que atravessa os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, o rio São Francisco tem sido vítima de diversos crimes ambientais. No Alto São Francisco, que vai das cabeceiras até Pirapora (MG), a extração de água por mineradoras tem secado nascentes e córregos. O rio Paracatu, um dos principais afluentes do Velho Chico, está com o leito seco e é atingido pelo derramamento de arsênio - material tóxico liberado na extração de ouro. Segundo moradores da região, os efeitos no metal liberado na mineração é o aumento no número de casos de câncer.

Na cidade de Três Marias, o esgoto doméstico sem tratamento é despejado no próprio rio. No Médio São Francisco, que vai de Pirapora até Remanso (BA), as grandes empresas do agrohidronegócio geram impactos diretos no rio, com a extração demasiada de água para irrigação, por exemplo. “Antes tinha muito peixe, hoje a gente ainda pesca um pouco graças à luta da gente para que o rio seja preservado, mas muitos pescadores têm que plantar uma rocinha pra complementar a renda. Quando se tinha água que o rio estava cheio, tinha várias coisas que os pescadores faziam como a corrida de barcos, mas nestes últimos anos não dá pra fazer mais porque o rio está seco”, explica a pescadora Alice que é presidenta da Associação dos/as Pecadores/as de Lagoa do Curralinho.

A pescadora relata também que muito da cultura ribeirinha tem se perdido junto com a diminuição da vazão do rio. “Este ano até a procissão de São Pedro que a gente faz na comunidade foi com muita dificuldade sem ter nem como os barcos passar. Esse ano foi pouquinho barco porque tinha muita areia no Rio. Tem muita pedra também e os pescadores perdem muita rede porque a rede bate logo nas pedras e rasga. Têm poucos lugares fundos e por isso a gente tem que pescar na ficha porque [os lugares] são muito disputados”, desabafa.
O desmatamento da mata ciliar, o assoreamento, as hidrelétricas são algumas situações encontradas no Alto São Francisco se repetem no submédio, de Remanso até Paulo Afonso (BA), e no baixo, de Paulo Afonso até a foz. “A situação aqui na foz entre as duas cidades Brejo Grande, no estado de Sergipe, e Piaçabuçu, em Alagoas, está muito difícil com relação ao avanço do mar. Aqui onde o pessoal tinha várias áreas de plantio de arroz está se perdendo porque as pessoas estão deixando de plantar devido à salinidade, desaparecendo as espécies de peixes nativos e aparecendo espécies do mar, e também desaparecendo vegetação nativa. Aqui no baixo São Francisco não se toma mais água do rio, não se banha, nem lava roupa como se fazia antes”, alerta Eneias Rosa dos Santos, membro da Articulação Popular São Francisco Vivo. Na região, o mar já avança por mais de 50 km e como consequência há um colapso no abastecimento de água potável para a população rural e urbana e aumento dos casos de hipertensão dos moradores por conta da alta taxa de salinidade da água.

Acerca da quantidade de dejetos despejados no São Francisco, estudo recente realizado pelo Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos e pela Companhia do Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf) revela que o leito do rio recebe 23 milhões de toneladas de sedimentos por ano, da nascente na Serra da Canastra à foz no oceano Atlântico. O mesmo estudo orienta como saída para aumentar o volume de água no rio e ajudar na navegação e combate ao assoreamento transpor água de outros rios para o Velho Chico. A proposta é levar água dos rios São Marcos e Parnaíba para o Rio Paracatu e do Rio Grande diretamente para o Velho Chico. O trabalho apresenta ainda a proposta de construção de cinco barragens em cursos d’água da bacia: três barramentos no Rio Paracatu, um no Rio das Velhas e outro no Urucuia, como forma de aumentar a capacidade de armazenamento e de normalização do curso, segundo reportagem de Luiz Ribeiro publicada no site em.com.br.

As orientações da pesquisa são surreais, segundo o professor José Siqueira. “Pra entender o São Francisco tem que entender de forma macro. Todos os cuidados que se deve ter com o Rio São Francisco são a médio e longo prazo. Primeiro, pelo fato de que o rio está morto e as pessoas teimam e insistem em fazer campanhas pra ‘cuidar do Rio’ e não existe esta possibilidade! Pra gente poder resolver esse problema do São Francisco, vamos ter que ter muita vontade política e capacidade pra poder fazer um trabalho de médio e longo prazo pra desconstruir responsavelmente, paulatinamente, as hidrelétricas do São Francisco. O rio precisa voltar ao seu leito natural, as lagoas naturais precisam voltar a ser ocupadas pelos berçários de peixes e as populações vão ter que mudar as suas posições onde invadiram o leito natural do rio”, diz taxativo.

No ano de 2004 foi criado o Programa de Revitalização da Bacia do rio São Francisco. A iniciativa do Ministério do Meio Ambiente - MMA, em parceria com o Ministério da Integração Nacional e outros 14 Ministérios e parceiros como a Codevasf, a ANA, o Ibama, o ICMbio, a Funasa/MS, Universidades Federais e o CBH-SF, tem um prazo de execução de 20 anos. Em agosto do ano passado, o Comitê Gestor do Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, lançou o Plano Novo Chico, com os objetivos de facilitar ações do Poder Público nas áreas de meio ambiente, saneamento e de infraestrutura. A ideia é que até 2019 seja dada prioridade à conclusão de obras de saneamento e de abastecimento.

Enquanto as ações do Governo em prol da revitalização do São Francisco andam a passos lentos, as populações que dependem do manancial têm feito movimentos para denunciar e informar as pessoas sobre os atos criminosos realizados contra o Velho Chico. “Diante de todos esses desafios a gente tem tentado organizar a comunidade, comissão da pastoral dos pescadores, MPA e associação dos pescadores. A gente tem feito seminários e mobilizações para o enfrentamento a estes megaprojetos. Sabemos que o nosso inimigo é gigante, mas a gente tem feito formação no sentido de nos fortalecer. A gente sabe que é difícil a luta, mas a gente não pode perder a esperança e desanimar porque o nosso povo não quer sair daqui. Os jovens, pescadores não querem sair de sua comunidade”, afirma o pescador e militante Damião.

Privatização da Eletrobrás: quem paga a conta?

Na última segunda-feira (06), o presidente Michel Temer acertou com ministros que enviará ao Congresso Nacional um projeto de lei com a proposta de privatização da Eletrobras. O Projeto defendido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM RJ) prevê o incremento de R$ 12,2 bilhões nos cofres públicos no próximo ano. Segundo o Governo, o dinheiro será usado para aliviar as contas públicas, cobrir encargos setoriais para reduzir as contas de luz no ano que vem e para um programa de revitalização do Rio São Francisco.

A estatal é dona de 30% da capacidade de energia instalada no Brasil e controla 47 usinas hidrelétricas, 114 termelétricas a gás natural, óleo e carvão, duas termonucleares, 69 usinas eólicas e uma usina solar, próprias ou em parcerias, distribuídas por todo o país. O argumento que a equipe econômica do governo utiliza para defender a privatização é a de que a Eletrobras tem gerado altos custos para os cofres públicos devido à estrutura inchada, além de acumular uma dívida líquida de R$ 23 bilhões.

Em entrevista concedida no dia 30 de outubro de 2017, à TV universitária da UFPE, o ex-diretor geral da Companhia (Chesf), José Ailton de Lima afirmou que diferente do que o governo federal tem defendido, se houver a desestatização, as chances de o povo pagar a conta são bem maiores. “A Eletrobras tem um conselho formado por 10 membros, seis são do Governo, que bem ou mal representam o povo, e quatro são do setor privado. E hoje a grande discussão do conselho é acerca de soltar muita ou pouca água, é claro que os privados querem gerar o máximo possível, diferentemente dos representantes do governo cuja prioridade é soltar água para a população. Agora na hora que você privatiza o sistema Eletrobrás, você vai privatizar este modelo de gestão e aí a decisão passa a ser privada. Aí eles vão se perguntar: o que é melhor para mim, soltar água ou prender água? Liberar mais ou liberar menos? Ele vai decidir de acordo com o interesse dele. Essa questão da privatização da Eletrobras é um crime contra a população, porque o governo está dando ao setor privado uma arma pra ele poder inclusive ditar o preço da energia elétrica. Além disso, vai controlar a água!”, alerta.

Na mesma ocasião, o pesquisador João Suassuna, explica que além da privatização da Eletrobras as obras da transposição vão futuramente gerar ônus para a população. “Há um estudo do IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] que diz o seguinte: o metro cúbico de água bombeado, chegando na ponta do projeto da transposição no Ceará e Rio Grande do Norte vai custar 13 centavos o metro cúbico. Hoje a Codevasf no Vale do São Francisco entrega água ao seu colono cobrando 2 centavos de reais e existe um cem número de colonos que não estão conseguindo pagar à codevasf esta água. A pergunta que não quer calar? Que colonos cearenses e norte rio grandenses vão ter condições de pagar esta água lá na ponta do projeto custando cinco vezes mais caro? Isso vai ser impossível de ser realizado. E até podem tornar isso viável usando uma coisa chamada subsidio cruzado, ou seja, a gente que mora aqui em Recife vai ter a nossa conta de luz acrescida para possibilitar o irrigante cearense irrigar suas culturas”.

Por Elka Macedo - ASACom
Fotos: João Ripper, André Fosseti


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